E agora José?
“E agora José?
A festa acabou,
a luz apagou o
povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?”
(Carlos Drummond de Andrade)
O mundo adoeceu. Foi forçado a
parar. A natureza está cansada. Todos em casa, aprendendo a se isolar, a cuidar
dos outros e de si mesmos. Obrigados a rever nossa relação com o meio ambiente,
a tecnologia, o dinheiro. A reinventar a maneira de estar no planeta
Não é todos os dias que o nosso
destino é tão marcado por um evento. O
inimigo não é um país, uma possível guerra nuclear, um grupo ou ideologia
específica, mas um vírus invisível e implacável que pode estar em qualquer
lugar. Uma ameaça onipresente que não faz distinção de classe, raça, gênero,
etnia; que não respeita fronteiras, credos religiosos, idade ou poder político: fez os líderes das grandes nações parecem crianças assustadas.
Um inimigo que pode estar escondido, insidiosamente, no beijo da pessoa amada,
no abraço carinhoso de um filho ou num aperto de mão amigo.
Uma ameaça ambígua e virtual. Um medo
reiterado da morte que nos leva a evitar contatos sociais, ao pavor de que
nossos parentes e amigos sejam atingidos e que o país entre em colapso e em uma
crise econômica. Nesse contexto, a insegurança é continuamente realimentada, a
ansiedade, o sentimento de impotência, e o pendor ao fatalismo disparam.
Nossa
vida mudou, nunca mais será a mesma.
Confinada, abandonei tristemente,
meu habito de dar longas caminhadas pela cidade Universitária. Lá o Céu é mais azul
e os pássaros, parecem cantar mais alto. É uma área cotidianamente muito cheia
de vida, movimentada, rica de energia repleta de jovens estudantes que
vislumbram o futuro. Agora está tudo fechado, apagado, um deserto que faz
pensar que não existe futuro...
No silêncio que invade tudo: a
cidade imóvel. São meus pensamentos que passeiam na esperança de falar por
acaso com um pedestre que passe na rua, ou somente escutar o som de passos que
ecoam. As horas passam diferente.
Esses tempos de catástrofe e
desalento me fizerem concordar com o que
diz o Nobel de literatura José Saramago, “somos cegos que, vendo, não
veem”, incapazes de apreciar a beleza do natural, dos gestos cotidianos que
tecem nossa existência e dão sentido à vida, como passear livres pela rua, dar
um beijo ou um abraço, ir ao cinema ou ao bar para tomar uma cerveja com os
amigos, gestos de nosso cotidiano que
fazíamos muitas vezes sem descobrir a força de poder agir em liberdade, sem
imposições do não poder.
Passo os dias em casa, observando
os objetos acumulados durante uma vida.
Estar a em confinamento me inspira a rever meu mundinho, abrir as
gavetas e descobrir o que realmente importa. A casa se torna o transporte para
a longa travessia. O temor de transpor lugares desconhecidos vive ao meu lado,
numa estrada longa e tortuosa que não sei onde terminará. O céu carrancudo e o vento das incertezas
indicam que tempestades se avizinham.
Da janela do meu quarto vejo a cidade se
aquietando, os carros parados, os aviões que já não passam. É um tempo de
contemplação, de corpo quieto, de angustia. Tempo de me livrar do falso controle.
De entender o coletivo. De fazer parte, pela primeira vez de um mundo
obrigatoriamente colaborativo. Um tempo para o planeta respirar. Ele está de
certa forma nos fazendo sentir sua dor, sua falta de ar.
Às vezes, acordo disposta e
produtiva, na companhia dos personagens das histórias que não me canso de
contar cada segundo assume então, importância vital. Pensar, ler, compor,
recompor, criar, recriar; em outras, estou dispersa e errante. Nesses dias —
mais frequentes, tenho de confessar — meus textos são abandonados nas terceiras
linhas, vejo uma série por no máximo sete minutos, me esqueço de tirar o
pijama, o dia se vai, e acabo indo dormir na desarrumação da cama que deixei ao
acordar pela manhã. Alternando “dias sim”, “dias não” Vou tentando “dar conta”
da situação. “Dar
conta”, passou a ser, desde que a normalidade foi cancelada, o novo “ser
feliz”.
As palavras passaram a ter novos
sentidos. Cada um de nós, têm dentro de si agora, outra camada, outro conteúdo,
outra densidade, e todos nós, sem exceção, seremos obrigados a nos ressignificar,
o vírus nos obrigou a revisar nossas prioridades, ser pessoas diferentes, mais humildes;
ele nos sacudiu e nos fez tomar consciência
de nossa pequenez de nossa vulnerabilidade. A falta de liberdade que o
distanciamento social nos obriga, nos mostra como ela é imprescindível,
essencial.
Despedaçados perante nossos medos
mais ocultos, fomos obrigados a admitir aquilo que já sabíamos, mas não
queríamos aceitar: somos todos iguais. No final das contas, após todo o
dinheiro, todo o status, todos os privilégios, encolhemo-nos de medo das mesmas
coisas e sentimos uma compaixão comum diante dos números que crescem, seja
na Itália, nos Estados
Unidos ou na nossa cidade.
Se antes bastava se cercar no
próprio feudo e a guerra não chegaria ali, agora, para funcionar para mim,
precisa funcionar para todo mundo. Para que eu seja protegido, preciso proteger os
outros. A conta do nosso egoísmo chegou, cara e sem nenhum desconto. Chegamos
no ponto decisivo, na curva da inflexão na qual ou nós mudamos a maneira de
convivermos enquanto sociedade ou estaremos sempre à mercê de nosso próprio
egoísmo disfarçado de vírus, guerras, crises
econômicas ou governantes inescrupulosos.
O tempo mudou de tempo, e o novo tempo é de não deixar nada para amanhã.
A Covid-19 é cruel e democrática, e vai levar muitos de nós. Pedir perdão,
perdoar, ter coragem de amar de verdade. Mais do que limpar armários, maratonar
séries, é chegada a hora de retornar mensagens e fazer declarações sinceras,
mesmo que sejam duras. Ao tomarmos consciência de que a doença que mata a minha
mãe também mata a mãe de quem mora do outro lado do mundo. Que o mesmo problema que quebra o meu negócio
desemprega o meu funcionário mais simples, enxergamos a importância de
profissões que muitas vezes considerávamos pouco importantes ou dispensáveis.
Constatamos que o medicamento que me falta, também faltará para quem mora na favela.
Sentimos que a mesma solidão que se abate sobre mim angustia o outro que tem
nome, cor, origem e religião diferentes dos meus.
Percebemos que a vida, mais do que nunca, perdeu a garantia, e o único
sentido — o único — é ser tão grande quanto se pode ser. Sair, das nossas
bolhas, das nossas coberturas, das nossas realidades. Aprender a ser melhor, a
ser gente que se preocupa com gente, de forma real e para além de qualquer
discurso vazio e hipócrita. Estamos em casa, mas nossas palavras e ainda podem
ir a qualquer lugar.
Nunca estivemos tão longe uns dos outros, tão apartados, tão separados,
e, por incrível que pareça tão juntos.
Ante essa catástrofe que alcança a
todos, que se rompam neste país as trincheiras da polarização do Nós e ELES, para nos sentirmos solidários numa mesma
preocupação. Na dor e na calamidade coletiva, sentimos que somos menos
desiguais do que pensamos. E que, no fim das contas, as lágrimas não têm
ideologia.