quarta-feira, 14 de outubro de 2020

E AGORA JOSÉ ?


 

E agora José?

E agora José?

A festa acabou,

a luz apagou o povo  sumiu,

 a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?” 

(Carlos Drummond de Andrade)

 

O mundo adoeceu. Foi forçado a parar. A natureza está cansada. Todos em casa, aprendendo a se isolar, a cuidar dos outros e de si mesmos. Obrigados a rever nossa relação com o meio ambiente, a tecnologia, o dinheiro. A reinventar a maneira de estar no planeta

Não é todos os dias que o nosso destino é tão marcado por um evento.  O inimigo não é um país, uma possível guerra nuclear, um grupo ou ideologia específica, mas um vírus invisível e implacável que pode estar em qualquer lugar. Uma ameaça onipresente que não faz distinção de classe, raça, gênero, etnia; que não respeita fronteiras, credos religiosos, idade ou poder político: fez os líderes das grandes nações parecem crianças assustadas. Um inimigo que pode estar escondido, insidiosamente, no beijo da pessoa amada, no abraço carinhoso de um filho ou num aperto de mão amigo.

 Uma ameaça ambígua e virtual. Um medo reiterado da morte que nos leva a evitar contatos sociais, ao pavor de que nossos parentes e amigos sejam atingidos e que o país entre em colapso e em uma crise econômica. Nesse contexto, a insegurança é continuamente realimentada, a ansiedade, o sentimento de impotência, e o pendor ao fatalismo disparam.

  Nossa vida mudou, nunca mais será a mesma.

Confinada, abandonei tristemente, meu habito de dar longas caminhadas pela cidade Universitária. Lá o Céu é mais azul e os pássaros, parecem cantar mais alto. É uma área cotidianamente muito cheia de vida, movimentada, rica de energia repleta de jovens estudantes que vislumbram o futuro. Agora está tudo fechado, apagado, um deserto que faz pensar que não existe futuro...

No silêncio que invade tudo: a cidade imóvel. São meus pensamentos que passeiam na esperança de falar por acaso com um pedestre que passe na rua, ou somente escutar o som de passos que ecoam.  As horas passam diferente.

Esses tempos de catástrofe e desalento me fizerem concordar com o que  diz o Nobel de literatura José Saramago, “somos cegos que, vendo, não veem”, incapazes de apreciar a beleza do natural, dos gestos cotidianos que tecem nossa existência e dão sentido à vida, como passear livres pela rua, dar um beijo ou um abraço, ir ao cinema ou ao bar para tomar uma cerveja com os amigos,  gestos de nosso cotidiano que fazíamos muitas vezes sem descobrir a força de poder agir em liberdade, sem imposições do não poder.

Passo os dias em casa, observando os objetos acumulados durante uma vida.  Estar a em confinamento me inspira a rever meu mundinho, abrir as gavetas e descobrir o que realmente importa. A casa se torna o transporte para a longa travessia. O temor de transpor lugares desconhecidos vive ao meu lado, numa estrada longa e tortuosa que não sei onde terminará.  O céu carrancudo e o vento das incertezas indicam que tempestades se avizinham.

 Da janela do meu quarto vejo a cidade se aquietando, os carros parados, os aviões que já não passam. É um tempo de contemplação, de corpo quieto, de angustia. Tempo de me livrar do falso controle. De entender o coletivo. De fazer parte, pela primeira vez de um mundo obrigatoriamente colaborativo. Um tempo para o planeta respirar. Ele está de certa forma nos fazendo sentir sua dor, sua falta de ar.

Às vezes, acordo disposta e produtiva, na companhia dos personagens das histórias que não me canso de contar cada segundo assume então, importância vital. Pensar, ler, compor, recompor, criar, recriar; em outras, estou dispersa e errante. Nesses dias — mais frequentes, tenho de confessar — meus textos são abandonados nas terceiras linhas, vejo uma série por no máximo sete minutos, me esqueço de tirar o pijama, o dia se vai, e acabo indo dormir na desarrumação da cama que deixei ao acordar pela manhã. Alternando “dias sim”, “dias não” Vou tentando “dar conta” da situação. “Dar conta”, passou a ser, desde que a normalidade foi cancelada, o novo “ser feliz”.

As palavras passaram a ter novos sentidos. Cada um de nós, têm dentro de si agora, outra camada, outro conteúdo, outra densidade, e todos nós, sem exceção, seremos obrigados a nos ressignificar, o vírus nos obrigou a revisar nossas prioridades, ser pessoas diferentes, mais humildes; ele nos sacudiu e nos fez tomar consciência   de nossa pequenez de nossa vulnerabilidade. A falta de liberdade que o distanciamento social nos obriga, nos mostra como ela é imprescindível, essencial.

Despedaçados perante nossos medos mais ocultos, fomos obrigados a admitir aquilo que já sabíamos, mas não queríamos aceitar: somos todos iguais. No final das contas, após todo o dinheiro, todo o status, todos os privilégios, encolhemo-nos de medo das mesmas coisas e sentimos uma compaixão comum diante dos números que crescem, seja na Itália, nos Estados Unidos ou na nossa cidade.

Se antes bastava se cercar no próprio feudo e a guerra não chegaria ali, agora, para funcionar para mim, precisa funcionar para todo mundo. Para que eu seja protegido, preciso proteger os outros. A conta do nosso egoísmo chegou, cara e sem nenhum desconto. Chegamos no ponto decisivo, na curva da inflexão na qual ou nós mudamos a maneira de convivermos enquanto sociedade ou estaremos sempre à mercê de nosso próprio egoísmo disfarçado de vírus, guerras, crises econômicas ou governantes inescrupulosos.

O tempo mudou de tempo, e o novo tempo é de não deixar nada para amanhã. A Covid-19 é cruel e democrática, e vai levar muitos de nós. Pedir perdão, perdoar, ter coragem de amar de verdade. Mais do que limpar armários, maratonar séries, é chegada a hora de retornar mensagens e fazer declarações sinceras, mesmo que sejam duras. Ao tomarmos consciência de que a doença que mata a minha mãe também mata a mãe de quem mora do outro lado do mundo.  Que o mesmo problema que quebra o meu negócio desemprega o meu funcionário mais simples, enxergamos a importância de profissões que muitas vezes considerávamos pouco importantes ou dispensáveis. Constatamos que o medicamento que me falta, também faltará para quem mora na favela. Sentimos que a mesma solidão que se abate sobre mim angustia o outro que tem nome, cor, origem e religião diferentes dos meus.

Percebemos que a vida, mais do que nunca, perdeu a garantia, e o único sentido — o único — é ser tão grande quanto se pode ser. Sair, das nossas bolhas, das nossas coberturas, das nossas realidades. Aprender a ser melhor, a ser gente que se preocupa com gente, de forma real e para além de qualquer discurso vazio e hipócrita. Estamos em casa, mas nossas palavras e ainda podem ir a qualquer lugar.

Nunca estivemos tão longe uns dos outros, tão apartados, tão separados, e, por incrível que pareça tão juntos.

Ante essa catástrofe que alcança a todos, que se rompam neste país as trincheiras da  polarização do Nós e ELES,  para nos sentirmos solidários numa mesma preocupação. Na dor e na calamidade coletiva, sentimos que somos menos desiguais do que pensamos. E que, no fim das contas, as lágrimas não têm ideologia.

 

 

 

ENQUANTO O LOBO NÃO VEM



                             

“Se ela se distraísse acabaria sendo feliz para sempre” 
Ruy Castro in“Ela é Carioca”

         
           Fazemos o que com nosso tempo?
           Nos ocupamos.
     Levantamos atrasados, engolimos o café apressadamente, enfrentamos o gargalo do transito já com a alma engarrafada.
         Desejamos um lar, uma profissão, ter amigos, coisas que nos ensinaram a desejar, projetos socialmente aprovados: ser feliz  para sempre.
          Acomodados. 
          Levando a vida em banho Maria. 
          Sem ousar experimentar.
       Sem conhecer as delicias de ser feliz por uns meses, depois curtir a infelicidade por dias.  Ser feliz em novembro porque uma ousadia deu certo, e infeliz em dezembro por que durou pouco. 
         Indispensável cultivar uma relação amigável com a solidão.        Muitas vezes a verdade de uma relação pode estar na impossibilidade.
      Admiráveis pessoas possuídas de si mesmas, que não se perdem, por angustias ou incertezas, questionam as dúvidas e enfrentam as encruzilhadas; mesmo que depois se arrependam do caminho escolhido, fazem do seu jeito, transgridem, queimam etapas: não se demoram onde não precisam parar.
         Preciso é, construí castelos; mesmo que venham ao chão, antes de concluídos, castelos que exigiram esforço, paixão, que esperançaram, mesmo que alguém, com uma frase com um gesto, os ponham a baixo sem considerar que lá dentro... havia alguém.
        Um projeto empolgante demais, uma paixão incontrolável demais, ideias ameaçadoras, desejos ardentes de mais: virão alvo, e o quem os derruba?
            A nossa vulnerabilidade. 
       A vida é transitoriedade, edificada sobre erros, sobre renúncias, trocando  sonhos e  ilusões pela construção do possível e do necessário, conquistando e perdendo. Superar a perda pede audácia, desprendimento e é o desejo da conquista que nos impulsiona.                  Desejar é ficar de pé, é o que nos move. Desejo é força pulsante, não permite acomodação. Entretanto, nada é mais vulnerável que o nosso desejo.
         Muitas vezes, por medo, por falta de confiança em nossas próprias defesas, trocamos o desejo  pela ponderação. Nenhum risco nos ameaça, nenhuma surpresa nos assola a alma. Estamos confortavelmente salvos nos protegendo de grandes emoções e sem nos darmos conta, na solitária alma, toma assento a desolação
            Urgente estar sempre a erguer novos castelos, homenagens póstumas ás nossas pequenas mortes .  Esquecer a demasiada sensatez, ter esperança; qualquer esperança. . A vida é potencial a ser desenvolvido. Viver é construir intensos momentos que, quando relembrados, tomam o corpo inteiro, trazendo o delicioso prazer do que um dia foi experimentado. 
        Imperioso construir uma vida cuja história mereça ser contada.    
               Enquanto o lobo, do fim do nosso tempo, não vem.





sábado, 9 de maio de 2020

APARIÇÕES

  APARIÇÕES



        Mortos e enterrados, antigos amores às vezes nos aparecem como fantasmas:De repente
                Em fragmentos:
                Na frase de um livro, num gesto, numa palavra, numa música, um perfume, ao dobrar uma esquina, ao molhar os pés numa poça d’agua.
                 A “figura fantasmagórica” submerge das profundezas da memória esquecida.
                 Não é saudade, não: é pura abelhudice, intromissão
                 Ninguém chama fantasma! 
                 Ninguém os governa.
                 Eles surgem quando querem, sem cerimônia e se instalam na cadeira ao lado.
                  Não interferem, em absoluto no amor em curso, fantasmas não tem esse propósito. O amor em curso é recheado de realidade e segue sem que seja incomodado, também não se pode dizer que são frustações de sonhos irrealizados. 
                    Não. Tiveram seu tempo, foram generosos, deram e receberam com fartura. 
                    Vem para lembra que um amor valeu a pena, fez história. Comoveu, enterneceu e que por um motivo ou outro passou. Se foi para que surgissem novos amores, novos caminhos 
                     Não tem nada a ver com frases como – não esqueceu!!- que paixão!!.  Nada disso. Coisa mesmo de assombração: chega sem convite da memória remexida e vai como veio: sem dar satisfação
                     As vezes deixam um doce amargo na boca noutras, o gosto adorável de hortelã, um olhar iluminado, uma “ coisa linda” sussurrada ao pé do ouvido, um para sempre que se esvaiu feito fumaça.
                     É a lembrança da ausência.
                     Uma ausência branda, guardada, acomodada, aconchegada. 
                     Que transcendeu à dor: amalgamou.
                     Saudade da saudade antiga, aquela boa saudade, que ainda precisa ser titulada.
                      Lampejos da lembrança de pequenas felicidades.
                     Adoráveis essas aparições:  são cordiais beija flores: chegam colorem o dia e sem aviso, rapidamente voejam deixando um leve sorriso nos nossos lábios.






quarta-feira, 28 de agosto de 2019

VELHO AMOR



Nunca envelhecerás na minha lembrança! ”
Saúl Dias, in "Sangue"..

Tarde fria, o livro abandonado. 
O solitário vento, o quarto frio.  
O armário, a manta de lã, a desastrada mão, a velha caixa de lembranças guardadas, espalhadas pelo chão.
Desperta a velha entorpecida memória. 
A canção que o tempo esqueceu.
Na fotografia me vejo a teu lado, um amor acariciado descuidado na saudade, presente em cada canto compartilhado da cidade que deixamos de encontrar.  
Do desencontro, um conto de amor sem ponto final, vestígios de dor jogado aos meus pés, velhas lembranças, velhos papéis.
Um ardente verão, um insano novembro, apaixonados dias distantes.
O tempo afastado no irrealizado, destinos quebrados, desviados na solidão, a voz muda, no que era para ser, tendo tanto a dizer.
Será que te esqueço de fato? 
Envelhece a dor, envelhecem os fatos e o tolo velho amor não percebeu o tempo que correu.
Lembrar a dor, desvairada maldade.  
Escorre pelos olhos a saudade.
Amores navegam por lugares jamais visitados,
O vento muda ...   No que era certo aporta a dúvida.
Destinos? Quebra-cabeças que juntamos ao longo dos danos. 
Ancoramos nossos planos no descaso.
Vivemos em meio ao improviso. 
O amor vive no acaso

sexta-feira, 7 de junho de 2019

ROTINA VIOLADA





Enxugando as, mãos tremulas no avental surrado, subo as escadas até o quarto, respiro fundo procurando tomar coragem para abrir as velhas portas do antigo guarda roupas.
Minhas roupas de sair ainda ao lado das de Rodolfo cheiram a naftalina: eficaz para espantar os bichos e a nós mesmos, pois nunca mais usamos aquelas peças:  nada de saias rodadas, camisas de linho, ternos de casimira.
A rotina se travestiu da naftalina e espantou a nossa vontade de sair ou de dançar pela casa ao som de Beatles e   de relembrar, aos pés cansados, o rock‘n’roll.  Por que será que a alegria se esqueceu de Rodolfo?
 Agora que ele se foi, não tenho mais como saber. 
Suspiro a cada peça de roupa que retiro e coloco sem pressa na mala esvaziando o armário pela metade. As roupas avivam a memória ...o vestido do batizado do Jr, o casaco da viagem de lua de mel para o sul.. 
Três décadas haviam se passado desde que eu fora arrancada das discotecas para ser a dona da casinha singela montada no bairro do Brás perto da casa de mamãe que me ajudou a cuidar de dois filhos.
Me pergunto o que mais teria acontecido, não tivesse meu marido partido? Com certeza não haveriam grandes surpresas. A monótona vida de: café, casa arrumada, almoço, jantar e novela das nove com certeza, se estenderia por séculos. Afinal a lembrança mais excitante de que me recordo foi quando meu filho caiu de boca no chão, na sua festa de aniversário, e engoliu o próprio dente. 
Uma enorme celebração!!
Fecho o zíper da mala e me pergunto se não seria melhor doar tudo aquilo, talvez eu devesse recomeçar do zero... Não preciso da resposta. Fecho as cortinas do quarto e por uma última vez, faço a cama. As pessoas virão para cá para arrumar as coisas já que há um defunto um velório e um enterro, presumo...então quero deixar tudo em ordem para as visitas. 
"O habito torna o absurdo aceitável”.
Arrasto a cama para arruma-la e ela, range como sempre. Digo para mim mesma: _ Agora você não pode mais reclamar do barulho que faço, não pode também ridicularizar minhas lagrimas: minha “bobeira” !!!  
Ai me calo. Agora que ele está quieto pela eternidade, me contento com seu silêncio
Arrasto a mala pelo corredor e a deixo na porta de entrada. Preciso antes de sair, deixar a casa em ordem...Vou até a cozinha, encontro no ar ainda, o cheiro pungente de meu marido. Tento não me afetar com a cena e ideia, afinal a louça do café da manhã esta amontoada na pia: xícaras, pires, facas e garfos, todos passam pela minha esponja, a água corrente me tranquiliza.
Dura rotina penso...Afinal não houve uma manhã desde o casamento, que eu passei sem lavar a nossa louça, mas saber que não preciso mais fazer isso me alegra. Limpo o facão que usávamos para cortar o pão com cuidado para ter certeza que nele não ficaram manchas. Se havia algo que Rodolfo sempre reclamava eram das manchas nos talheres: - Dá desgosto colocar algo “quase sujo” na boca. Dizia
Eu nunca entendi isso, até porque eu tinha beijado seus lábios por todas aquelas décadas: bocas limpas ou “quase sujas”, sem nunca ter reclamado!!!
Tendo certeza que a faca suja está limpa guardo-a na gaveta dos utensílios. Gostaria de limpar o balcão, mas não há muito o que fazer já que os respingos vermelhos estão espalhados por toda a parte. Lavo minhas mãos. Respiro fundo mais uma vez, e então dou um último olhar para o corpo de meu marido, estirado no chão.
Definitivamente, não tenho como limpar a poça de sangue que o circunda e sinto um certo alivio ao perceber que não sou eu quem vai lavar seu pijama ensanguentado. Gostaria de fechar seus olhos arregalados mas me sinto enojada...Sem dar adeus, saio da cozinha rapidamente, tentando desviar da piscina de fluidos esparramados pelo piso...Nunca vi minha cozinha tão bagunçada!
Pego a mala, tranco a porta e sorrio para Elizete, a vizinha. Nenhuma preocupação com suas fofocas sobre mim, porque nós duas sabemos que ela não devolveu os potes de plásticos que emprestei meses atrás. Entro no carro, lanço um último olhar para a minha (agora antiga) casa.
Sinto um alivio: a retirada de um peso das costas. Soubesse eu, que poderia acabar com tudo de forma tão rápida e definitiva, não teria desperdiçado trinta anos de minha vida.













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quinta-feira, 18 de abril de 2019

"COM A GRAÇA DE UM ESPANTO"

“A morte deveria ser assim:
Um céu que pouco a pouco anoitecesse
E a gente nem soubesse que era o fim” 
 (Mario Quintana)

Leio que estudo recente apontou que 42% das mulheres sofrem com as altas temperaturas corporais até os 65 anos. O problema pode afetar também a vida sexual das pessoas nessa faixa etária.
Leio e fico assustada.
Leio também que a partir dos 50 anos algumas mulheres começam a sofrer da perda de cabelo ou alopecia.
Com certeza aos 60 estarei Careca.
Fico assustadíssima
E que a partir dos 30 perdemos 50 mil células cerebrais por dia, faço as contas: 50 células por dia vezes 365 dias ...Cerca de 1 milhão num ano. !!
Concluo aterrorizada: aos 65 não terei mais cérebro: viverei apenas de vagas lembranças.
Melhor usar da falta de memória, presente da velhice, e esquecer esses dados para não ficar neurótica. Um dia desses, tentando sustentar a conversa desinteressante com alguém me peguei pensando: Eu aqui perdendo meus preciosos neurônios com essa mala!!
Envelhecer não é fácil. Longe disso. A sensação é a de estar afundando em areia movediça; E olha que ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando. Lidar com a inexorabilidade desse processo exige uma habilidade da qual não estamos preparados. Por outro lado, bom lembrar que a velhice não é tão ruim quando você considera a alternativa: você não quer envelhecer, prepare-se para morrer.
A verdade é que estou mais velha. Estou mais chata. Sem tolerância, sem paciência - coisa que nunca tive -. Não ando suportando lugar apertado e música alta. Não bebo vinho vagabundo, não aguento ouvir reclamações de amigas que estão tristes porque não entram em um jeans 42. 
Sabe que à medida que vou ficando mais velha, vai me dando uma preguiça...não aquela preguiça que me impede de fazer as coisas, é uma preguiça diferente. Preguiça de gente chata, de gente egoísta, de gente que complica as coisas. Preguiça de coisas difíceis, de filmes ruins, de bebidas amargas. O bom de ficar velha é que dá uma preguiça de sofrer...
Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum.  Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda.  Negar o inevitável, é inútil serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena. 
Da mesma forma que ensaiamos os primeiros passos por imitação, temos que aprender a ser adolescentes, adultos e a ficar cada vez mais velhos.
Hoje em dia quase ninguém se assume como velho. Mesmo quem já atingiu idade avançada costuma fazer questão de dar a impressão de ser mais jovem. Chamar alguém de “velho” é quase uma ofensa.
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de ludibriar a velhice também nas palavras. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém ousar me dizer que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que se arriscar a falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável!
A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor.  Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. 
Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com “ a graça de um espanto”.
Ainda que maldigamos o envelhecimento, é ele que nos traz a aceitação das ambiguidades, das diferenças, do contraditório e abre espaço para uma diversidade de experiências com as quais nem sonhávamos anteriormente.  Aprendemos a ser mais autênticos porque deixamos para trás o medo do que outras pessoas iriam dizer ou pensar e a realizar o trabalho mais difícil que faremos em toda a nossa existência, mas também um dos mais gratificantes: Conhecer a nós mesmos.
Esse conhecimento nos chega através de nossa trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos “comezinhos do cotidiano”. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cacas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

ORQUIDEAS BRANCAS


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Por trás da vidraça na noite fria, a chuva deslizava embaçando a visão. A madrugada sua companheira, nas noites de insônia, hoje se arrastava penosamente, a sensação era que o dia nunca amanheceria.
Sempre gostou de observar a chuva, de fechar os olhos e respirar fundo saboreando o cheiro da terra molhada. Um sorriso no canto da boca a surpreendeu quando lembrou dela menina, se deliciando no banho de chuva chutando as poças d’agua. Adultos não fazem isso. Lamentou. A menina cresceu, mas sua parte inocente ainda sobrevive,  algo dentro dela ainda a mantém ingênua.   
Insônia é coisa difícil, uma amolação, O corpo exausto, o pensamento cansado, o raciocínio pedindo demissão e ela é visita que chega e se esquece de ir embora. 
O que nos tira o sono nos dá sonhos.  A insônia foi acordada certamente por um inusitado acontecimento: 
A rotina do dia havia passado, carregada de trabalho, o chefe do escritório de advocacia não lhe dava trégua, chamando-a a cada segundo, questionando, criticando, empurrando mais processos.
Passava um pouco das três da tarde quando um mensageiro chegou perguntando por ela tendo em mãos um arranjo de alvas orquídeas.
O cartão apenso dizia: _ A você que encanta minhas manhãs... sem assinatura
Insistiu inutilmente que o portador lhe dissesse quem era o galanteador anônimo, colocou as flores sobre a mesa e como era de se esperar, perdeu a concentração. Os processos ficaram acumulados ao lado das orquídeas.
Agora as orquídeas perfumam seu quarto e convidaram a insônia para que   juntas tentassem descobrir de quem seria o adorável gesto. 
Aos 26 anos já havia desistido de romance. Depois da traição de Roberto a amargura e a decepção haviam gelado seu coração, mas algo lá dentro ainda deseja alguém disposto a provar que ela esta errada em desacreditar de tudo, nos braços de alguém ela ainda espera encontrar seus sonhos de menina. Vivia, porém, cercada de gente pelos menos vinte anos mais velha, assim ela não era opção de conversa para ninguém. Viviam enclausurados no pequeno apartamento ela e seu gato Getúlio.
Difícil dormir com aquela pergunta martelando o cérebro: - Quem me mandou as flores?
Começou a procurar na memória possíveis admiradores. O galanteador diário da padaria? Não, era muito troglodita para pensar num gesto desses. Talvez alguém do prédio do escritório, ou talvez do prédio onde mora. Um homem apaixonado com certeza daria algum sinal antes das orquídeas. Um olhar diferente um sorriso um cumprimento. 
_ Será que na minha estupidez não percebi nada? Pensou alto.
 O rapaz do ponto de ônibus, sim poderia ser ele:  lhe chamava a atenção seu jeito triste. Sempre com um fone nos ouvidos. Sempre com um cigarro na boca. Nunca sorria. Nunca falava com ninguém, mas uns dias atrás puxou conversa com ela falando sobre o tempo e o atraso do ônibus.
Pensava e não conseguia parar de imaginar como seria o admirador secreto e a única ajuda que a insônia, deitada ao seu lado, lhe dava, era espantar de quando em quando o sono.
 Lembrou-se do advogado recentemente admitido, da conversa no cafezinho, do sorriso simpático, do elogio ao seu cabelo sedoso e a sua blusa de renda branca que deixava transparecer uma pequena parte do seu belo busto.
De repente num salto pulou da cama foi até as orquídeas pegou o cartão e lá estava “Floricultura Bem me quer”...   _é isso!!  Amanhã sem falta vou até a floricultura e não saio de lá sem descobrir o remetente.
Acordou tarde, perdeu a hora e saiu em disparada. Encontrou o rapaz do ponto de ônibus, também atrasado. Ao vê-la fez um cumprimento com a cabeça acompanhado de um sorriso discreto.  Bem que poderia ser ele disse a si mesma, imaginando um desfecho romântico.
A manhã passou vagarosamente... foi muitas vezes até a copa procurar um café e o encontro com o advogado galanteador...inutilmente.
Perguntou por ele à recepcionista que assegurou que estaria no escritório no período da tarde.  Ficou arquitetando um modo de sutilmente perguntar a ele sobre as orquídeas e distraidamente derrubou café num dos processos. Consertar o estrago levou muito tempo: perdeu a hora do almoço. Um lanche às pressas e teve de voltar ao trabalho. A ida a floricultura ficou para o fim do expediente.
Envolvida no trabalho nem percebeu quando o advogado galanteador, se aproximou de sua mesa.
_Boa tarde! Você está com o processo dos Almeida e Castro?
 Levantou o olhar por cima dos óculos, e lá estava ele...nervosa derrubou os processos, enquanto procurava o dele, que gentilmente agachou-se ajudando-a a recolher os que ficaram esparramados pelo chão. Ela ruborizou quando sem querer suas mãos se tocaram. 
De posse do processo se retirou, mas ao chegar a porta olhou para traz e lhe mandou um sorriso.   O bastante para que ela tivesse certeza que era ele. 
 Enfim, final de expediente e lá foi ela a caminho da floricultura, uns seis quarteirões e estava à porta de entrada, respirou fundo, tomou coragem e entrou:
Uma floricultura muito elegante, apinhada de flores de todas as espécies e orquídeas muitas orquídeas que perfumavam o ambiente. Seu admirador tinha bom gosto, concluiu na sua cabecinha lisonjeada.
-Bom dia!
-Bom dia, respondeu solicito um senhor atrás do balcão, em que posso ajuda-la?
-Gostaria que me fizesse um enorme favor. Recebi ontem no trabalho um arranjo com lindas orquídeas brancas, mas o cartão veio sem remetente e.
Foi bruscamente interrompida:
-A senhora recebeu as orquídeas brancas?
-Sim, fui eu, mas o remetente….
- O escritório em que senhora trabalha fica no prédio Trianon?
-Sim
_Por acaso o nome da senhora é Clarisse?
_Sim, Sim 
_Zeca ...Oh Zeca, venha já aqui, berrou o atendente
O mensageiro que lhe entregou as flores apareceu no fundo da loja.
_Sabe o que você fez. Seu Moleque ...
O mensageiro só balançou assustado a cabeça numa negativa... 
_ Você entregou as orquídeas para a Clarisse errada !!!!