terça-feira, 4 de dezembro de 2018

VASTA FERIDA DA MEMÓRIA





Caminha descalço pela areia com as calças dobradas até a altura dos joelhos, a praia deserta, o calor, a lua branca, senta-se na areia fuma de frente para o mar. 
Pensa que nada mais o prende ali, todos os seus sonhos ruíram como castelos de areia, ao se confrontarem com a implacável realidade.
Se pergunta em que momento o sonho do futuro se ancorou no passado.
E não há mais nada a fazer.
Não há mais forças para lutar:a experiência da noite anterior o atormenta e abate.

Tudo começou de repente. Um depois do outro, foram chegando devagar, muitos gritando palavras de ordem. Ele sem se dar conta é parte de uma manifestação espontânea de repúdio. Uma revolta ainda que mínima merece registro. Sua máquina fotográfica registra tudo.
Pedras, destroçam vitrines e a repressão chega de forma violenta. Se instaura uma batalha campal, cassetetes, bombas de efeito moral. Tiros contra tubos e pedras, crânios abertos, olhos perdidos, vidas.
Os sobreviventes escoam pelas ruelas adjacentes, impossível tentar socorrer alguém, soldados com seus cassetetes enormes em cima de cavalos: aparentam ter dois metros de altura, não perdoam ninguém.
O improvável se torna realidade. Um jipe chega com milico graduado, cercado pelos seus. E a rua se enche de fiéis antes ocultos. Ressoam vivas!!!
Naquele turbilhão se sente impotente, nada pode fazer senão salvar sua própria pele.
“Uma pátria que aliena filhos, exige a morte dos que a compõe”, pensa, enquanto alcança a porta de entrada de seu prédio. De volta ao apartamento, liga a TV esperando alguma notícia do acontecido. Nada. Sabe que é sempre assim; total ausência de informações, o que se sabe de acontecimentos, daquela ordem, são notícias que correm de boca em boca e se distorcem no caminho, tornando impossível a distinção entre realidade e fantasia. Faltam fontes certificáveis, e todas a notícias oficiais são muitas vezes tão improváveis quanto incertas.
Está exausto, adormece no sofá
Alguém bate à porta com rancor.
Dormiu de roupa, até de sapatos, se levanta abre a porta. Seu mundo desaba: vasculham sua casa, recolhem sua máquina fotográfica. Irrompe uma chuva de cassetetes e botas. Tenta acordar, trêmulo, de olhos suplicantes pergunta o que fez, o que disse, a todos pulmões. O corpo arde, queima, o medo atrofia cada músculo do seu corpo. Lançado escada abaixo, desce cambaleando, insultos, mais chutes, a raiva, a loucura. Aos empurrões lhe enfiam numa perua veraneio. É arrastado até uma sala de interrogatório. Dois oficiais entram e, em tom ameaçador, exigem que ele conte tudo:
- Fala, porra!  Rugem os dois de uma vez.
Depois de uma seção de tortura interminável, trancam-no numa cela com dois sujeitos, ele se encolhe num canto, cada centímetro do seu corpo dói. Os dois detentos sorriem de seu desespero
- Você falou?
- Falei o quê?
Não entende porque está ali, nem faz ideia de como vai sair. Ele é medo. Um medo que corrói, humilha e dói mais do que os golpes, os gritos, os insultos. Passa o resto da noite numa fria cama de concreto. O medo lhe impede de fechar os olhos. Amanhece. Três guardas aparecem e lhe tiram da cela aos empurrões. Chegam num quarto escuro, sentam-no numa cadeira.
Antes que possa abrir a boca, a sua velha máquina fotográfica lhe é atirada, sua boca sangra.
- Quem lhe mandou tirar essas fotos? Fale seu porra!! Berra um oficial de alta patente,
chutando-lhe as pernas.
- Ninguém me mandou tirar as fotos, tenho fotos de todos os lugares da cidade, foi coincidência eu estar lá no momento em que a polícia chegou!!!!
Um soldado entra e diz alguma coisa no ouvido do oficial. Que lhe pergunta, para seu espanto, gentilmente.
- Seu sobrenome é  Calarraro?
- Juntando suas últimas forças diz: sim 
- Você é parente do general?
- Ele é meu tio.
Imediatamente, o levam a uma enfermaria, cuidam de suas feridas, lhe dão roupas limpas e pedindo inúmeras desculpas, em menos de trina minutos, está de volta ao seu apartamento.  

“E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer. A memória é uma vasta ferida.“ - (Chico Buarque)

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