quarta-feira, 14 de outubro de 2020

E AGORA JOSÉ ?


 

E agora José?

E agora José?

A festa acabou,

a luz apagou o povo  sumiu,

 a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?” 

(Carlos Drummond de Andrade)

 

O mundo adoeceu. Foi forçado a parar. A natureza está cansada. Todos em casa, aprendendo a se isolar, a cuidar dos outros e de si mesmos. Obrigados a rever nossa relação com o meio ambiente, a tecnologia, o dinheiro. A reinventar a maneira de estar no planeta

Não é todos os dias que o nosso destino é tão marcado por um evento.  O inimigo não é um país, uma possível guerra nuclear, um grupo ou ideologia específica, mas um vírus invisível e implacável que pode estar em qualquer lugar. Uma ameaça onipresente que não faz distinção de classe, raça, gênero, etnia; que não respeita fronteiras, credos religiosos, idade ou poder político: fez os líderes das grandes nações parecem crianças assustadas. Um inimigo que pode estar escondido, insidiosamente, no beijo da pessoa amada, no abraço carinhoso de um filho ou num aperto de mão amigo.

 Uma ameaça ambígua e virtual. Um medo reiterado da morte que nos leva a evitar contatos sociais, ao pavor de que nossos parentes e amigos sejam atingidos e que o país entre em colapso e em uma crise econômica. Nesse contexto, a insegurança é continuamente realimentada, a ansiedade, o sentimento de impotência, e o pendor ao fatalismo disparam.

  Nossa vida mudou, nunca mais será a mesma.

Confinada, abandonei tristemente, meu habito de dar longas caminhadas pela cidade Universitária. Lá o Céu é mais azul e os pássaros, parecem cantar mais alto. É uma área cotidianamente muito cheia de vida, movimentada, rica de energia repleta de jovens estudantes que vislumbram o futuro. Agora está tudo fechado, apagado, um deserto que faz pensar que não existe futuro...

No silêncio que invade tudo: a cidade imóvel. São meus pensamentos que passeiam na esperança de falar por acaso com um pedestre que passe na rua, ou somente escutar o som de passos que ecoam.  As horas passam diferente.

Esses tempos de catástrofe e desalento me fizerem concordar com o que  diz o Nobel de literatura José Saramago, “somos cegos que, vendo, não veem”, incapazes de apreciar a beleza do natural, dos gestos cotidianos que tecem nossa existência e dão sentido à vida, como passear livres pela rua, dar um beijo ou um abraço, ir ao cinema ou ao bar para tomar uma cerveja com os amigos,  gestos de nosso cotidiano que fazíamos muitas vezes sem descobrir a força de poder agir em liberdade, sem imposições do não poder.

Passo os dias em casa, observando os objetos acumulados durante uma vida.  Estar a em confinamento me inspira a rever meu mundinho, abrir as gavetas e descobrir o que realmente importa. A casa se torna o transporte para a longa travessia. O temor de transpor lugares desconhecidos vive ao meu lado, numa estrada longa e tortuosa que não sei onde terminará.  O céu carrancudo e o vento das incertezas indicam que tempestades se avizinham.

 Da janela do meu quarto vejo a cidade se aquietando, os carros parados, os aviões que já não passam. É um tempo de contemplação, de corpo quieto, de angustia. Tempo de me livrar do falso controle. De entender o coletivo. De fazer parte, pela primeira vez de um mundo obrigatoriamente colaborativo. Um tempo para o planeta respirar. Ele está de certa forma nos fazendo sentir sua dor, sua falta de ar.

Às vezes, acordo disposta e produtiva, na companhia dos personagens das histórias que não me canso de contar cada segundo assume então, importância vital. Pensar, ler, compor, recompor, criar, recriar; em outras, estou dispersa e errante. Nesses dias — mais frequentes, tenho de confessar — meus textos são abandonados nas terceiras linhas, vejo uma série por no máximo sete minutos, me esqueço de tirar o pijama, o dia se vai, e acabo indo dormir na desarrumação da cama que deixei ao acordar pela manhã. Alternando “dias sim”, “dias não” Vou tentando “dar conta” da situação. “Dar conta”, passou a ser, desde que a normalidade foi cancelada, o novo “ser feliz”.

As palavras passaram a ter novos sentidos. Cada um de nós, têm dentro de si agora, outra camada, outro conteúdo, outra densidade, e todos nós, sem exceção, seremos obrigados a nos ressignificar, o vírus nos obrigou a revisar nossas prioridades, ser pessoas diferentes, mais humildes; ele nos sacudiu e nos fez tomar consciência   de nossa pequenez de nossa vulnerabilidade. A falta de liberdade que o distanciamento social nos obriga, nos mostra como ela é imprescindível, essencial.

Despedaçados perante nossos medos mais ocultos, fomos obrigados a admitir aquilo que já sabíamos, mas não queríamos aceitar: somos todos iguais. No final das contas, após todo o dinheiro, todo o status, todos os privilégios, encolhemo-nos de medo das mesmas coisas e sentimos uma compaixão comum diante dos números que crescem, seja na Itália, nos Estados Unidos ou na nossa cidade.

Se antes bastava se cercar no próprio feudo e a guerra não chegaria ali, agora, para funcionar para mim, precisa funcionar para todo mundo. Para que eu seja protegido, preciso proteger os outros. A conta do nosso egoísmo chegou, cara e sem nenhum desconto. Chegamos no ponto decisivo, na curva da inflexão na qual ou nós mudamos a maneira de convivermos enquanto sociedade ou estaremos sempre à mercê de nosso próprio egoísmo disfarçado de vírus, guerras, crises econômicas ou governantes inescrupulosos.

O tempo mudou de tempo, e o novo tempo é de não deixar nada para amanhã. A Covid-19 é cruel e democrática, e vai levar muitos de nós. Pedir perdão, perdoar, ter coragem de amar de verdade. Mais do que limpar armários, maratonar séries, é chegada a hora de retornar mensagens e fazer declarações sinceras, mesmo que sejam duras. Ao tomarmos consciência de que a doença que mata a minha mãe também mata a mãe de quem mora do outro lado do mundo.  Que o mesmo problema que quebra o meu negócio desemprega o meu funcionário mais simples, enxergamos a importância de profissões que muitas vezes considerávamos pouco importantes ou dispensáveis. Constatamos que o medicamento que me falta, também faltará para quem mora na favela. Sentimos que a mesma solidão que se abate sobre mim angustia o outro que tem nome, cor, origem e religião diferentes dos meus.

Percebemos que a vida, mais do que nunca, perdeu a garantia, e o único sentido — o único — é ser tão grande quanto se pode ser. Sair, das nossas bolhas, das nossas coberturas, das nossas realidades. Aprender a ser melhor, a ser gente que se preocupa com gente, de forma real e para além de qualquer discurso vazio e hipócrita. Estamos em casa, mas nossas palavras e ainda podem ir a qualquer lugar.

Nunca estivemos tão longe uns dos outros, tão apartados, tão separados, e, por incrível que pareça tão juntos.

Ante essa catástrofe que alcança a todos, que se rompam neste país as trincheiras da  polarização do Nós e ELES,  para nos sentirmos solidários numa mesma preocupação. Na dor e na calamidade coletiva, sentimos que somos menos desiguais do que pensamos. E que, no fim das contas, as lágrimas não têm ideologia.

 

 

 

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