sexta-feira, 7 de junho de 2019

ROTINA VIOLADA





Enxugando as, mãos tremulas no avental surrado, subo as escadas até o quarto, respiro fundo procurando tomar coragem para abrir as velhas portas do antigo guarda roupas.
Minhas roupas de sair ainda ao lado das de Rodolfo cheiram a naftalina: eficaz para espantar os bichos e a nós mesmos, pois nunca mais usamos aquelas peças:  nada de saias rodadas, camisas de linho, ternos de casimira.
A rotina se travestiu da naftalina e espantou a nossa vontade de sair ou de dançar pela casa ao som de Beatles e   de relembrar, aos pés cansados, o rock‘n’roll.  Por que será que a alegria se esqueceu de Rodolfo?
 Agora que ele se foi, não tenho mais como saber. 
Suspiro a cada peça de roupa que retiro e coloco sem pressa na mala esvaziando o armário pela metade. As roupas avivam a memória ...o vestido do batizado do Jr, o casaco da viagem de lua de mel para o sul.. 
Três décadas haviam se passado desde que eu fora arrancada das discotecas para ser a dona da casinha singela montada no bairro do Brás perto da casa de mamãe que me ajudou a cuidar de dois filhos.
Me pergunto o que mais teria acontecido, não tivesse meu marido partido? Com certeza não haveriam grandes surpresas. A monótona vida de: café, casa arrumada, almoço, jantar e novela das nove com certeza, se estenderia por séculos. Afinal a lembrança mais excitante de que me recordo foi quando meu filho caiu de boca no chão, na sua festa de aniversário, e engoliu o próprio dente. 
Uma enorme celebração!!
Fecho o zíper da mala e me pergunto se não seria melhor doar tudo aquilo, talvez eu devesse recomeçar do zero... Não preciso da resposta. Fecho as cortinas do quarto e por uma última vez, faço a cama. As pessoas virão para cá para arrumar as coisas já que há um defunto um velório e um enterro, presumo...então quero deixar tudo em ordem para as visitas. 
"O habito torna o absurdo aceitável”.
Arrasto a cama para arruma-la e ela, range como sempre. Digo para mim mesma: _ Agora você não pode mais reclamar do barulho que faço, não pode também ridicularizar minhas lagrimas: minha “bobeira” !!!  
Ai me calo. Agora que ele está quieto pela eternidade, me contento com seu silêncio
Arrasto a mala pelo corredor e a deixo na porta de entrada. Preciso antes de sair, deixar a casa em ordem...Vou até a cozinha, encontro no ar ainda, o cheiro pungente de meu marido. Tento não me afetar com a cena e ideia, afinal a louça do café da manhã esta amontoada na pia: xícaras, pires, facas e garfos, todos passam pela minha esponja, a água corrente me tranquiliza.
Dura rotina penso...Afinal não houve uma manhã desde o casamento, que eu passei sem lavar a nossa louça, mas saber que não preciso mais fazer isso me alegra. Limpo o facão que usávamos para cortar o pão com cuidado para ter certeza que nele não ficaram manchas. Se havia algo que Rodolfo sempre reclamava eram das manchas nos talheres: - Dá desgosto colocar algo “quase sujo” na boca. Dizia
Eu nunca entendi isso, até porque eu tinha beijado seus lábios por todas aquelas décadas: bocas limpas ou “quase sujas”, sem nunca ter reclamado!!!
Tendo certeza que a faca suja está limpa guardo-a na gaveta dos utensílios. Gostaria de limpar o balcão, mas não há muito o que fazer já que os respingos vermelhos estão espalhados por toda a parte. Lavo minhas mãos. Respiro fundo mais uma vez, e então dou um último olhar para o corpo de meu marido, estirado no chão.
Definitivamente, não tenho como limpar a poça de sangue que o circunda e sinto um certo alivio ao perceber que não sou eu quem vai lavar seu pijama ensanguentado. Gostaria de fechar seus olhos arregalados mas me sinto enojada...Sem dar adeus, saio da cozinha rapidamente, tentando desviar da piscina de fluidos esparramados pelo piso...Nunca vi minha cozinha tão bagunçada!
Pego a mala, tranco a porta e sorrio para Elizete, a vizinha. Nenhuma preocupação com suas fofocas sobre mim, porque nós duas sabemos que ela não devolveu os potes de plásticos que emprestei meses atrás. Entro no carro, lanço um último olhar para a minha (agora antiga) casa.
Sinto um alivio: a retirada de um peso das costas. Soubesse eu, que poderia acabar com tudo de forma tão rápida e definitiva, não teria desperdiçado trinta anos de minha vida.













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