domingo, 27 de janeiro de 2019

A SALA DE VISITAS




Quem disse que eu me mudei?
Não importa que a tenham demolido:
A gente continua morando na velha casa em que nasceu”.
Mario Quintana

A casa é soma da existência de quem lá vive: morada da família e dos afetos, da amizade e dos amores, mas também da dor, das frustações, dos traumas e até da morte. Metade formada de escolhas; a outra metade: milagres.  
Assim como acho que de certa forma inventamos, criamos a nossa casa com seu aconchego ou frieza, seu regaço ou impessoalidade, penso que vamos até certo ponto, criando a casa da nossa vida. Com tropeços, grandes pedras, terremotos, mas também pequenos paraísos.
Minha imaginação e eu nos damos as mãos ao visitar na memória a primeira, aquela que conservo a mais remota lembrança.  Ficava numa rua tranquila, com um jardim de lírios amarelos que me encantavam quando a primavera os recebia. O muro baixo com portão de madeira que ao ranger, anunciando a chegada de alguém, me fazia largar a brincadeira e correr até a varanda para receber o visitante. Reviver essa casa é visitar lembranças, incertezas, coisas que se misturam, é como se espiasse a infância no retrovisor, alguém que espia no espelho do tempo, a inocência, a fase das descobertas, das perguntas.
Sempre achei a cozinha o melhor lugar da casa, as regras de etiqueta e convivência lá não penetravam. A conversa descontraída em volta da mesa, o café descansando permanentemente no banho maria na lata vazia de goiabada em cima da chapa do fogão de lenha.
Lá habitavam a intimidade, o riso os cheiros e os sabores. Gostava, no inverno, de compartilhar com o velho gato de minha vó, o cantinho aquecido perto do fogão, onde minha fantasia visitava o mundo das princesas e fadas e arquitetava planos minuciosos para acabar de vez com a bruxa horrenda que vivia no porão.
Desses guardados de minha velha infância, encontrei a “sala de visitas”. Ficava logo na entrada da casa, ao final de uma escadaria de três lances e tinha um lugar de destaque na casa de minha avó. Me lembro com que esmero minha tia Geo, passava o escovão pelas tabuas enceradas todas as manhãs, tirava com cuidado o pó dos bibelôs, do conjunto de moveis de palhinha e da mesinha de madeira entalhada onde brilhava o jogo de café de porcelana. Gostava de ficar sentada em frente ao relógio cuco, majestoso na parede em frente à entrada, esperando que a cada meia hora ele saísse da casinha gritando Cuco...cuco, mas isso só era permitido enquanto minha tia limpava a sala, depois a sala era hermeticamente fechada. Sempre achei aquilo muito estranho. Para que ter um lugar tão bonito sem que ninguém, a não ser as visitas, que apareciam de vez em nunca, pudesse usar?
Nós crianças, apenas éramos chamadas para cumprimentar as visitas depois expulsas do recinto sem cerimônia. A sala de visitas era lugar para conversa de adultos. Quando criança ansiava por crescer logo para descobri que segredos escondiam aquelas paredes. Imagine a decepção quando adulta ao descobri que na sala as conversar versavam sempre sobre nulidades: politica, tempo, decadência de costumes, acontecimentos ...o que não podia acontecer era o silêncio. Silêncios são embaraçosos.
Conversas com muitos ruídos, muitas interferências, muita rigidez e muita frivolidade, muita superficialidade: encontros cheio de desencontros.
Na lembrança de cada cômodo visitado, cada momento, cada minuto, cada sensação: o sótão para sonhar, o tenebroso porão habitado por bruxas e duendes, um quintal para fantasiar e sonhar. Imagens desfilam na mente como fleches de sensações, decepções, de alegrias, de festejo, de inocência, de surpresas, de silencio, de criar e indagar. Nossa casa alicerce do viver, em que organizamos, entre o cambalear, o entristecer, o enternecer, o alcançar, o perder ou realizar o que sonhamos e que sempre nos surpreende: porque ao meio passam as águas do tempo que tudo leva e transforma.
Com o tempo, tantos adeuses, celebrações misturadas a lágrimas, ou risos, pessoas que vão crescendo   e transformando o movimento dessa engrenagem de que somos parte, e que, apesar das ausências, dos desencontros, se chama vida.  
Seja no derrubar, construir, reinventar, murmurar, querer entender, querer mudar, não ser o que somos, lá no fundo, o que queremos é sentir a vida em toda a sua plenitude. Nesse longo processo, de a cada dia aprender, perder, construir e questionar o projeto de vida que trouxemos e continuamos trazendo nas mãos quase sempre não materializado.





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